História do Festival


Boi-bumbá, memória de antigamente de Manaus



As festas juninas parecem trazer à memória a lembrança da infância ou da adolescência. A memória chama o passado e a tradição reivindica seu espaço junto à modernidade. Hoje, se a festa junina resume-se praticamente à disputa entre dois bois, carnavalização de um intenso marketing cultural, em décadas passadas ela era o coração do folclore regional, abraço de todas as tradições. As toadas do boi, hoje cantadas o ano inteiro nas rádios e tevês, através de requebros aeróbicos, esvoaçantes plumas e muito
paetê, se faziam ouvir nas festas juninas de antigamente apenas através das vozes ao vivo dos brincantes. Talvez, por isso, a memória as tenha gravado mais firmemente e as viesse repetindo ano a ano.
(Resumo: Digressão sobre alguns aspectos do folguedo junino em Manaus, nos anos
40-50, visto pela perspectiva de alguns estudiosos da cultura urbana regional, quando
as festividades folclóricas pareciam mais espontâneas e mais participativas. As
mudanças ocorridas na ritualização do auto popular na década de 70 parecem ter
deslocado também o significado do conceito de tradição.)

As comemorações dos três santos de junho – santo Antônio, são João e são Pedro – davam-se no espaço ao largo das igrejas e em algumas ruas da cidade. Os bois eram parte dos folguedos, mas as danças de roda, as cirandas, as quadrilhas, as adivinhações, os cordões de bichos e os “pássaros” (“japiim”, “tucano”, “bem-te-vi”, “gavião”, “corrupião”, “guará”) eram o forte desde o início do século. Bairros, como a Cachoeirinha, eram famosos por seus arraiais na época junina. Depois, nos anos 50, precisamente em 1956, por iniciativa de Bianor Garcia de O Jornal e do Diário da Tarde, mas com o estímulo da Comissão Estadual do Folclore, criou-se o Festival Folclórico de Manaus, onde a atração principal eram os pássaros” e as “tribos” dos Andirás e dos Ipixunas. E o que era doce acabou-se, o brinquedo
virou, pouco a pouco, um quesito para as bancas julgadoras.

Em junho de 1987, no então atuante jornal A Notícia, comentando o Festival Folclórico na Bola da Suframa já discutia esse enviezamento do folguedo: (...) como se comportam os espectadores? Indo de barraca em barraca, num come-e-bebe contínuo (quando o bolso está recheado, o que não é muito comum nos dias de hoje), batendo papos animados, rindo e cantando em
grupinhos, e para coroar a noite, alguns sopapos de uns que já ultrapassaram o limite dos copos. Paqueras, olhares e passar de mãos, e de vez em quando uma mirada rápida para o folclore que se desenrola no tablado: a saia mais curta, as pernas mais cheias, a calcinha mais cavada, vislumbrada
no rodopiar das danças, os requebros mais salientes do “índio”’ enterrado nos penachos, a cara branca e magra de um “cangaceiro”, enfim, o esplendor do circo montado, e o povo aplaudindo, do lado de fora.
Suando, esforçando-se para brilhar e se afirmar, para ser o vencedor da noite, o grupo folclórico dança e rodopia, canta e lança seus olhares atentos para a Comissão Julgadora. Onde está a empatia? Onde está a identificação com o vivido? Onde ficou a memória? Que costumes, crenças, conhecimentos são criados e recriados nesse espetáculo pelos grupos folclóricos?

A história dos bois-bumbás já foi por muitos escrita e descrita, mas o interessante é que apesar de haver em todas as épocas numerosos bois, a cidade acabava por se dividir em simpatias por dois deles. Essa bipolaridade, que hoje é motivo, em Parintins, para divisões que vão além da geografia da cidade, das famílias, do lúdico enfim, e penetram o mundo do poder político-econômico, já se manifesta, pois, desde longa data, mas sem ofuscar o brilho das apresentações, muito embora o encontro entre os dois bois preferido de cada época fosse motivo para arruaças entre seus brincantes.

Em Manaus, nas primeiras décadas do século, dois bois-bumbás dividiam o gosto popular durante o mês de junho: Corre-Campo e Tira-Prosa. Em 1925, na Cachoeirinha, talvez o bairro mais apegado às tradições regionais, havia as famosas correrias do Garantido, do Mina de Ouro e do Caprichoso. Nos anos 40, os bois se espalham por vários “currais” na cidade: Mina de Ouro, no Boulevard Amazonas, Caprichoso, na Praça 14, Garantido, na Cachoeirinha, Tira-Prosa, no Imboca, Vencedor, no Alto de Nazaré, Mineirinho, Canário, Pai do Campo, Teimoso, todos na Av. João Coelho, Dois de Ouro, no Educandos, Malhadinho, na Leonardo Malcher, Curinga, na Aparecida, e muitos outros mais.

O boi-bumbá mereceu dos estudiosos da cultura popular uma atenção que vai da análise de um Câmara Cascudo à descrição de um antropólogo como Eduardo Galvão, Vicente Salles e Bruno de Menezes, no Pará, também dedicaram sua atenção a este folguedo junino.
Outros dois estudiosos das coisas amazônicas, o maranhense Nunes Pereira, casado com uma parintinense, e Moacyr Paixão e Silva, hoje radicado no Rio de Janeiro, ambos vinculados então ao Instituto de Etnografia e Sociologia do Amazonas – IESA, fundado por Nunes Pereira em 1944, também tiveram sua atenção atraída para o fenômeno do auto do boi-bumbá.
Moacyr Paixão e Silva, em junho de 1944, em plena “Guerra da Borracha”, descreve na revista Sintonia, no interessante artigo “Boi-bumbá tem aspectos bizarros”, uma típica noite de São João na Manaus de outrora:


Estamos em pleno mês joanino. Mês de fogueiras, do boi-bumbá, das sortes, dos balões, dos fogos (...). Foguetinhos, buscapés, espanta-muleques, estrelinhas, todo um exército de pólvora aplicada ao divertimento (...) copos cheios d’água, facas virgens, baralhos, bacias e velas se adaptam às sortes ingênuas, em que mocinhas investigam o futuro (...). Nas ruas
muita fumaça. Ninguém fica dentro de casa. As famílias se juntam às portas,
para o mungunzá, a tapioca, o aluá (...).
Em junho reina o boi-bumbá, essa tradição que o tempo nos legou originada
não se sabe rigorosamente de onde e de quem. Tradição popular talvez
negra, cheirando a totemismo transviado (...). Em Manaus é a po pulação da
Praça Catorze, da Cachoeirinha, do Boulevar, de Cons tantinopla
[Educandos] quem esquece as tristezas diurnas, as canseiras, a fome quantitativa
e qualitativa, a vida em todas as suas razões más, para vir bater
pandeiro, bater tabinhas, fazer de vaqueiro, amo, Pai Francisco, Mãe
Catirina, índio e outras personagens figuradas no curral joanino (...):
“Mina de Ouro quando urra
A terra estremece,
Vai quebrando pau
Vai ciscando terra,
Eh, boi,
Povo contrário esmorece”.

Mina de Ouro é o boi do Boulevard Amazonas. Anualmente vem à rua, bem-cuidado (...). O boi avança dançando, arrastando a sua barra branca rendada ao compasso dos padeiros e xeque-xeques. No seu traje típico, que lembra, nas penas e nas tatuagens, o velho homem vermelho dos tempos que ficaram para trás, os índios puxam, aos pulos e requebros, a marcha dos comparsas fantasiados de vaqueiro, amo, rapaz, Catirina e cazumbá, de Pai Francisco, de padre. O povaréu, pirus como chamam, vai de mistura com essa gente, cantando com ela, participando dos momentos bons e maus do cordão, fazendo força em pancadarias cada vez que a bandeira de seu boi periga pela presença de um rival doutras bandas. (...) Das primeiras às últimas horas da noite, pela cidade toda, a gente ouve os versos trôpegos, filhos de bardos pobres e intelectualmente rústicos, cantados em notas melancólicas, resto imortal daquela alma ferida de que o negro fez herança e os anos nos transmitiram através das gerações mestiças (...).
Faz lembrar o velho Caprichoso, neste ano de ação. Era o boi da Praça Catorze, da gente simples daquelas bandas. O Jeremias, o seu Raimundo, o Bobó, arrastavam o entusiasmo. Gente valente até nas toadas:


“Eu piso, eu piso, eu piso,
Eu piso porque agüento
Já pisei o Mina de Ouro,
No arraial do Entroncamento (...)”

Dançam nas ruas, nas casas, nos currais (...). Quando desaparece junho, toda essa gente, que brincou nos bois para esquecer amarguras, regressa aos seus motivos secos, habituais, de trabalhos exaustivos, nas fábricas, usinas, nas docas. Não mais há alegrias, só tristeza, lágrimas, apetites insatisfeitos, infortúnio, legítimas caminhadas sem pão, sem terra ou liberdade (...) voltam a ser os homens que pensam, sofrem, comem, trabalham e amam (...). Por que isso, Deus nosso? Por que esse desequilíbrio de alegria e dor?
Já Nunes Pereira, em seu artigo “Uma Interpretação do Bumba-meu-boi” (Folha do Norte, Belém, 27 de junho de 1948) analisa o folguedo como manifestação do teatro popular, uma das mais pitorescas, talvez importada da África através de Portugal pelos jesuítas, que introduziram o teatro na nova colônia. Considerado geralmente na adaptação dos tempos dos negros escravos, vê nesse ritual dançante, ao contrário, uma manifestação de dramaturgia indígena:


(...) as danças do boi-bumbá nasceram num instante em que o conquistador
e os jesuítas lançaram os fundamentos dos primeiros currais
neles prendendo o boi e não a anta, o mamífero de maior porte que os
índios conheciam (...); o número de índios nessas danças de boi-bumbá
é superior ao de vaqueiros e outros comparsas, principalmente na
Amazônia (...). As figuras ou personagens caracteristicamente negras
são Pai Francisco e Mãe Catilina ou Catirina (...). O amo, o padre e as
cava larias são portugueses. Mas os índios movimentam todo esse teatro
popular ambulante, que vai de casa em casa, cantando e dançando,
ressuscitando sempre, graças às artes mágicas do Pajé (...). Trazido esse
festejo do Nordeste, do Piauí e do Maranhão, e não diretamente da
África, ele tem ganho na Amazônia novas cores e novos movimentos.

De origem africana ou indígena, trazido diretamente da península ibérica ou do Nordeste, o boi-bumbá de Manaus representou por muito tempo a cultura original do Amazonas. André Araújo, relembrando os anos 40 de Manaus, então chamada “cidade risonha”, confirmava:


Em Manaus habita um povo alegre. (...) Dança-se muito, por qualquer motivo.
Um conjunto musical, um jazz, dois ou três instrumentos animam um
salão, numa festa tradicional como Santo Antônio, São João, São Pedro,
São Cosme e Damião, São Jorge; um boi-bumbá, um cordão de “pássaros”,
um rancho. (...) [os bumbás] são acompanhados por verdadeiras massas
populares (...). A ação começa com muita alegria, troça, chalaça, depois
entra numa tristeza com a morte do animal, até que, com o reviver do
“bicho”, volta a alegria. (...) O povo simples os aprecia muito (1974).

Mas, em fins da década de 70, o poeta Thiago de Mello já advertia para as
transformações que viriam a desfigurar este auto:


Naquele tempo [anos 40], o boi não era feito para turista, nem muito menos
para inglês ver. Era boi de verdade, feito mesmo para o povo. (...) O amazonense
tem o ritmo da sua alma na batida do tambor do boi. A batida é a
marca do nosso andamento musical, cheio das ressonâncias mágicas da
floresta, da força ancestral indígena. Ainda não a perdemos, mas que ela
anda ameaçada, isso anda. Aliás não é só o segredo da batida. É todo o legítimo
espírito do bumbá que impregnava todos os mais íntimos detalhes da
preparação da festa, da qual participar era expressão de amor e afirmação
de cultura popular, que começa a esvanecer-se, a perder substância e dar
lugar a improvisações de circunstância e a incorporações de valores coreográficos,
decorativos e rítmicos que nada têm a ver com a sua autenticidade
original. Sem falar do bumbá para fins políticos, eleitorais (...) batida
de amazonense é a batida do boi, o resto é contrafação. A batida do boi
com tambor e matracas. Não deixem que ela se acabe (1984, p. 66-68).

O boi mereceu também a atenção do conhecido etnólogo francês Roger Bastide, que, em 1947, o elevou a símbolo de uma possível dramaturgia nacional: “(...) procurei sugerir tudo o que o ‘Bumba-meu-boi’ comporta em matéria de elementos trágicos ou cômicos, que não esperam senão o seu Garcia Lorca para triunfar não somente sobre os palcos brasileiros, mas sobre todos os palcos do mundo. (...) existe no folclore brasileiro um teatro nacional” (A Manhã, 12/10/1947).

Ninguém contesta a importância do auto do boi. Folguedo, dança, desafio, arma política, teatro popular ou reminiscência totêmica, o boi-bumbá é, antes de tudo, memória de um tempo em que ingenuidade e uma certa espontaneidade comandava nossos movimentos.
O espetáculo dos bois-bumbás de Parintins de hoje nos coloca questões sobre essa caminhada na constante reelaboração de nossa identidade cultural.

Um comentário:

  1. Ler esses textos é fazer uma visita a antiga Manaus
    Fico deslumbrado porque é um assunto que muito me interessa.

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